Uma questão de mentalidade

By | October 31, 2014

Eu já estou tão acostumado com a cultura canadense que muita coisa passa desapercebida. Mas vira e mexe algo ainda me chama a atenção e eu sempre penso “preciso colocar isso no blog”, mas passam os dias, meses, anos (sério) e acabo nunca escrevendo. De qualquer forma…

Vocês hão de concordar comigo que o Brasil é um país maravilhoso. Riquíssimo em recursos naturais, solo fértil, diversidade ecológica e abundância de recursos hídricos, minerais… O que não presta mesmo é o povo. E quando digo povo uso a palavra no sentido de pessoas que moram lá e não “povão”. Das classes mais ricas às mais pobres ou se acham os coitados ou se acham os explorados ou se acham cheios do direitos. Frenquentemente uma mistura de todas as coisas. E é essa forma de pensar e agir que corrói o país.

O Canadá por outro lado não passa nem perto em termos de recursos naturais ou clima. Aliás, grande parte do país é inabitado de tão inóspito. Mas a mentalidade nos faz um país de primeiro mundo.

Vamos lá: O que acontece com o preço do bacalhau no Brasil perto da Páscoa? Ou do tender perto do Natal? Vai lá pra casa do chapéu! “O povo quer? Vamos arrancar um braço e uma perna deles!” Abusos ridículos de preço e o povo – que é idiota – compra.

Recentemente foi Thanksgiving aqui no Canadá e a comida tradicional para o almoço é Peru. Sabe o que acontece aqui? Peru entra em promoção! Todo mundo quer VENDER peru. Se o seu preço for baixo o suficiente o volume vai compensar a margem de lucro mais baixa… Parece meio óbvio. A título de referência compramos um peru de 6.5Kg por $14. Sim quatorze.

Esse eu vi hoje (e foi o que me motivou a escrever): Quantas vezes já aconteceu com você ou você presenciou essa cena: O ônibus pára no ponto e você está do outro lado da rua tentando atravessar. Consegue finalmente quando o último passageiro já subiu e sai correndo desesperadamente fazendo sinal, mas o motorista fecha a porta e muitas vezes, olhando na sua cara, simplesmente vai embora. Normal, né? Pensamentos típico de brasileiros: “Ora, saia mais cedo de casa.” “Pega o próximo.” “Se ferrou, trouxa”. “Haha!”

Por outro lado perdi as contas de quantas vezes já vi aqui o motorista esperar pacientemente. Aliás já estive em ônibus que o motorista viu uma pessoa que normalmente pega aquela linha ainda chegando no farol do lado oposto e simplesmente esperou. É comum também os motoristas descerem do ônibus para ajudar idosos, mulheres grávidas e deficientes. Uma vez em um ônibus que eu estava o motorista parou e desceu pra ajudar um cadeirante atravessar a rua porque a neve estava muita alta e ele ficou entalado.

Mais: Vamos concordar que gente porca tem em todo lugar e mesmo aqui não falta imbecil jogando lixo pela janela do carro. No Brasil a população vai reclamar na imprensa. Os mais pobres vão falar da imundície em que vivem. Os mais ricos vão falar da incompetência do governo em manter as ruas limpas.

Aqui temos mutirões organizados duas vezes por ano (primavera e outono) onde a prefeitura fornece sacos de lixo, as comunidades juntam voluntários para limpar as estradas e o departamento de estradas passa recolhendo os sacos cheios depois. Vale destacar que é comum durante a limpeza pessoas passarem – e até pararem – para agradecer aos voluntários pelo trabalho.

Mas o ápice desse post vem agora:

Se você segue esse blog sabe que eu faço parte do time de busca e salvamento de Halifax e em algum momento esse ano houve uma grande busca que levou vários dias.

A pessoa se perdeu em algo que seria equivalente a uma “reserva ecológica” no Brasil. Uma imensa área florestal com lagos, trilhas montanhas… Mas não muito longe da cidade. E na entrada desse parque tem um bairro chique. Não é um condomínio fechado, mas pense em alguma coisa alto nível, esquema alphaville, talvez. Um pouco afastado, na entrada de uma reserva, só com casas imensas e carros caros. Gente rica.

Eu não pude atender ao chamado da busca na noite que começou então só apareci no local no dia seguinte de manhã. E quando eu cheguei já estava aquele formigueiro com polícia, centenas de voluntários, imprensa, curiosos…

O único lugar que eu achei para parar era bem em frente a uma casa enorme, com Audis e BMWs na garagem e mal consegui espremer o carro pra ficar alguns centímetros da entrada da garagem. Desci do carro e abri o porta-malas para pegar meu equipamento. Mal coloquei a mochila nas costas e me aparece uma mulher. O diálogo foi mais ou menos assim:

M – Você é um dos voluntários?
Eu – Sim
M – Então, eu moro nessa casa aqui (aponta a casa que eu parei exatamente em frente. Nesse momentos, eu brasileiro, acostumado com gente rica no Brasil já imaginei o resto da conversa: “Dá pra tirar esse carro da frente da minha casa? Não tem espaço pra eu sair! Não pode fazer essa bagunça aqui não! Vamos respeitar os moradores!”).
M – Fala pro seu pessoal que se precisar de qualquer coisa é só bater, viu? Tem banheiro, tem água, comida. Vocês ficam à vontade! (minha cabeça explodiu)

Olha, acabou sendo uma das buscas mais longas da história aqui na região, num total de 5 ou 6 dias. No final até o exército foi envolvido. Eram centenas de carros, quadriciclos, pessoas a pé, helicópteros pousando e decolando constantemente polícia e ambulâncias indo e voltando… Uma vizinhança chique e quieta virou uma operação de guerra durante dias. Sabe o que os moradores fizeram?

Trouxeram tanta comida, água e doações que teve coisa que estragou! Um dos moradores tinha um daqueles trailers de viagem enormes. Ele trouxe pra perto do centro de comando e deixou para a família da vítima usar, assim eles poderiam ficar 24horas no local. Constantemente pessoas que cruzavam com a gente agradeciam a nossa presença e desejavam boa sorte na busca. Foi realmente marcante pra mim.

Aqui as pessoas seguram a porta para o próximo, seguram o elevador, dão passagem na rua, freiam para os pedestres, dizem “bom-dia, como vai” no mercado ou na lanchonete.

São muitos outros exemplos de como o Canadense pensa diferente do Brasileiro mas a moral da história é que isso reflete no país como um todo.

São por essas e outras que eu digo que o Brasil não tem jeito e os governantes são apenas reflexo do povo. Brasil: ame-o ou deixe-o. Eu deixei e só me arrependo de não ter saído antes.

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5 thoughts on “Uma questão de mentalidade

  1. Wanderley

    Esse não posso deixar de comentar. Como sempre, parabéns pelo post, que já manda o recado por si só. É uma pena não ter mais leitores (ainda). Por outro lado se fosse popular, nesse momento teria um tanto de “falsos patriotas” defendendo isso aqui com seus comentários rasos e inócuos.

    Tenho menos de 30 anos e me lembro quando minha mãe me ensinou o básico: “Com licença, por favor, obrigado, até logo…..” no melhor jeito Mineirim de ser: “Agradece o moço, filho. Peça desculpas JÁ”. Me recordo saudoso dos dias em que isso existia nesse país. Hoje, continuo sendo o mesmo e ainda fico frustrado quando, ao ser atendido, em um estabelecimento, após dizer um saudoso “Bom dia, Boa tarde, Boa Noite” sou acalentado por um mórbido…. silêncio e uma cara que me faz ter certeza de que falei alguma coisa errada.
    Continuo insistindo enquanto ainda não consegui sair daqui, fato é que, me ajustar à realidade Brasileira, não dá. Sinto, à cada dia que passa, que não pertenço a este lugar onde impera o jeitinho e a falta de educação.

    Abraços.

  2. vera

    Filho, mais uma vez parabéns pelo blog os temas são ótimos
    Mas infelizmente estamos muito longe de sermos assim tão engajado em ajudar ao próximo, mesmo porque não sabemos se as pessoas estão precisando de ajuda ou é mais um bandido querendo nos assaltar. E a poucos meses passei por uma experiência em uma academia em que eu chegava falava bom dia e ninguém me respondia, fiquei tão indignada com esse comportamento que troquei de academia.Infelizmente ainda estamos muito longe da sua atual realidade

  3. mari

    Ai, fico até triste! Esses exemplos, e tudo que a gente vive aqui no Brasil faz tudo parecer pior ainda quando leio seu blog. Mas ainda exeistem pessoas que fazem a diferença. Tenho um amigo que me dá carona as vezes e mesmo de moto ele sempre pára quando tem pedestres, é uma pessoa calma, sorridente, faz de tudo pelas pessoas, inclusive desconhecidos, bem nesse estilo canadense de ser… e repara bem… ele não trabalha, e tb não assiste TV!! Qm sabe se a gente não fosse tão injustiçado no trabalho e fosse menos violentado pela TV…

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